sábado, 16 de junho de 2012


Salgueiro

No recomeço de tudo
o sopro da vida pulsa
no escuro útero.

É a regressão do ser
a vestir-se de grão.

O broto em mutação
cava a passagem de ida
ao desconhecido instante
de orvalho e de sol
de vento e de lua

Fiel ao fio que o ancora
oferta à generosa chã
altaneira fronde
de folhas e frutos

À tormenta ceifadeira
inclina-se em reverência
e doa-lhe imoladas folhas
adubo de gérmen latente

Cada nó, cada gume
urde a preciosa trama
que forma a antiga morada
de todas as Eras


Par a Par
  
O equilíbrio entre dois na gangorra 
é não ficar do mesmo lado.
Não haveria diversão,
não fosse o impulso sincronizado,
às vezes desajeitado, a mover a gangorra.

Sem a alternância, um estaria isolado no topo
e o outro preso no chão.
E não desfrutariam do prazer de estarem
par a par, a eixo de cada oscilação.     
  

Folhas Soltas

No menear das águas
o que leva ao transe
é a alternância das vagas
e entre uma e outra, o repouso.
Pressinto o momento exato
da ascensão e declínio
a força, a direção, o sentido.

O que em ti me encanta
é esse mar agitado
às vezes contido
ondas que em mim reverberam
e em mim têm nascido
a alteridade da dança
e o intervalo que ancora
a investida e o recuo
a redução e o cimo

O que me leva ao transe
no fluxo das águas
que habitam em mim
é saber-me perene e farta
nas águas que há em ti.
E que que por certo advinhas
de onde virá a próxima vaga. 


O Décimo Signo

Regido por Capricórnio
é o leito e o curso do rio
da nau é o cais e o farol
da taipa, o barro e o esteio

Nativo do Décimo Signo
labuta de sol a sol
é o último dos retirantes 
da terra seca e rachada
que o vento eleva e dilui

É pedra bruta à espera
que as águas mornas de outubro
penetrem o solo sagrado
e em massapé transformado
revele os registros das Eras


Cornucópia

Antes de me encantar tinha asas
Disputava com as borboletas o néctar das flores

Sei de um vulto de capote preto a abeirar-se, 
puxar-me os pés.
Do minotauro à espreita de quem no labitrinto 
adentra.
Da imperatriz destronada a caminhar em círculos.
E as crianças a me distrair, o bastão a oscilar
ao som de risos infantis.

À bordo do berço, arrasta-me cada vez mais alto
e mais longe o vento.
Aflige-me os primeiros sinais da chegada da noite
Prostrada pelo debate, plano em suave declínio

Sei das montanhas, das árvores, do mar,
perco-me da civilização.
afasto-me do destino que penso ser meu.

Envolve-me jovem Deus enquanto deslizo
por translúcido tubo azul.
No solo me espera esquecido maná,
cornucópia plena de alimento.

O silêncio refaz o percurso.
Nada mais será como antes.


Decisão

Eu te amo por não desistires de ser tu,
quando quero que sejas eu
Porque o amor é meu, resolvi te dar,
e tu decidistes querer

Quando o Amor é Perene

Além, muito além dos gestos
eu te percebo
e nada me é estranho

Eu te percebo
no sinestésico pulsar
que exala da garganta
e tem cheiro de jasmim

Além dos cachos morenos
do vinco da testa
e da barba grisalha
onde te escondes

Como cortina ao vento
tu a mim te mostras
e vejo mais do que exibes

Adentro em teus mistérios
curiosa peregrina de ti
a desbravar a senda azul
que me leva aos segredos de mim

Além, muito além da íris
eu me pressinto
e tudo me é estranho


Murmúrio

Não tenho palavras, só a mente vazia, o peito oprimido, 
não gosto do que vejo, vejo o ventre dilatado, as marcas no rosto,
acordo em sobressalto, não sei de quê, 
quando não quero, lembro dos sonhos,
estou por um fio, até a vela não se sustenta,
a inércia dói, está chegando a hora, não sei de quê,
o fio soltou-se, então, em que me sustento?
caio, há tantas coisas a fazer, largo-me em frente à tv,
termina um programa, começa outro e mais outro,
olhos fixos nas imagens, até que cochilo, acordo,
vou ao banheiro, volto com lanche, deito de novo,
olho para o relógio, ainda é tão cedo, 
pra que pressa? o que espero? está tudo bem
e porque estou tão mal? não estou doente,
não briguei com ningúem, o que é então?
de onde vem essa aflição? medo do que?
de mim, do nada, nada faz sentido, nada tem valor
estou prostrada, o que estou fazendo aqui?
a cabeça dói, não sinto nada, não sinto nada, nada,
absolutamente nada, a não ser essa pressa
vontade de fugir, para onde me deixem em paz,
eu quero paz, o que é paz? será que ela existe? 
só eu sinto isso? será que vou ficar louca
ou louco é quem não sente isso?
já posso me deitar, não, não posso, a pia está cheia de pratos
e as plantas estão sem água
E se eu perder a hora? e se eu não acordar?
E se ninguém der por minha falta?  
Me deixe em paz, amanhã, amanhã eu vou,
amanhã eu vou, eu vou. 


Humores de Tigre 

O espelho antigo das águas
esconde o segredo das pedras
fragmentos de sonho
lembranças diáfanas
do fio perdido.

Humores de tigre
represa a sangrar
murmúrio que ecoa
à beira do precipício
em queda livre

Depois essa pressa
cotejo do enterro do dia
no azul das horas

A chama frágil em declínio
molda a crosta sobre o tempo


Charada

Seria a alma o espanto
o olhar para dentro, o descanso
a maestria, a quintessência, o transe
ruído de espectro errante
o anseio por asas
gregoriano canto?


Seria fragmento do cosmo
a glândula pituitária, o portal?
Eco de consciência na prova sensorial?
O instante de êxtase tridimensional?
Alento para certeza da morte rondar?
Ou a imortalidade plasmada por tanto indagar?


Onipotência e Fé
Como se faz para ter fé? perguntou minha filha. 
Fui tomada por grande vazio, enquanto observava seu olhar aflito.
Fé, confiança, entrega, aceitação, resignação, redenção, 
as palavras eram eco de um  murmúrio distante.
Senti-me impotente, vulnerável, em queda livre.
Eu, que nunca esperei acontecer, estava a ponto de desapontá-la.
Atordoada pela fé em mim depositada, silenciei. 
Pareceu uma eternidade a sensação do desconhecido.
Vi, então, os fragmentos de minhas experiências flutuarem na mente,
até formarem um grande mosaico.
As peças, de variadas formas, tamanhos e cores,
nenhuma desperdiçada, encaixadas umas às outras com perfeição.
Antes que a lucidez me fugisse, apressei-me em responder:
Não faça nada, minha filha, não faça nada!


De Algum Anel Azul

Aos gnomos, ondinas
salamandras e sílfides
Aos servos dos quatro elementos 
Às bruxas, magos e xamãs,
alquimistas das plantas sagradas
À ordem angelical,
às virgens e santos,
aos exus das encruzilhadas,
aos vários arautos de recados divinos
e de preces humanas
Aos orixás, deuses e heróis
das muitas fábulas e lendas,
aos atributos dos mitos
aos pretos velhos, caboclos e ciganos,
às remotas tradições
aos veneráveis arquétipos
da sabedoria ancestral.

Ouço o chamado de remotas memórias,
únissona voz, onírica evocação
de todos que há em mim.
e o retumbar do tambor
na locas espiraladas
de algum anel azul.